quarta-feira, 8 de maio de 2019

Epaminondas (Conto), de Artur Azevedo



Epaminondas
Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.
Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável, por tudo quanto não fosse a expressão exata e cristalina da verdade.
Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de esposo, porque o amava. Casaram-se.
Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientíssimo sistema de não encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.
Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.
Esses receios não se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.
Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.
A esposa sobressaltou-se, coitada, — mas o marido tranquilizou-a com estas palavras:
— Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não sinto por essa mulher senão asco.
— Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário, o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio capaz de transformar o teu caráter!
— Não creias.
— Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!...
— Cala-te! Não digas tolices!...
— Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus não me digas nada! Ao menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Vê como estou nervosa!...
— Isso passa.
Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com ele ao dentista.
De repente abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou como um raio.
— Ah! Lacerda, meu Lacerda, enfim te encontro!...
E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocotte abraçou com veemência e beijou repetidas vezes o seu ex-amante, que em vão forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansão.
— Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!
Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado.
Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia.
O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda.
— É minha mulher! Esconda-se!...
A cocotte compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou.
Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.
D. Sidônia entrou no consultório, e, vendo o marido com o colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou:
— Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?...
— Ninguém... nada... bem vês, — balbuciou o Dr. Lacerda.
Houve uma pausa.
O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D. Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato.
Ela voltou-se para o filho:
— Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?
— Uma senhora?
— Que senhora?
— Não a conheço.
— Que fez ela?
— Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai!
D. Sidônia fulminou com um olhar terrível o Dr. Lacerda, que, para disfarçar, atava de novo a gravata.
— Que senhora é essa? — interrogou ela com os lábios trêmulos.
O Epaminondas respondeu pelo pai:
— Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito grande!
— Onde está essa mulher?
— Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...
— Onde?
— Naquele quarto.
D. Sidônia empurrou com o pé a porta da alcova, mas não encontrou ninguém lá dentro: a Esmeralda, praça velha que não se apertava nas ocasiões difíceis, abrira outra porta, comunicando com o corredor, e conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor ruído.
Vendo a situação bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia revistava a alcova, disse baixinho ao filho:
— Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!
E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada:
— Ah! Ah! Ah! Ah!...
— Que quer isso dizer? — perguntou ela.
— Quer dizer que caíste como um patinho!
— Hem?
— Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu grande!
— Mas... para quê?
— Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo resultado da pilhéria...
— Isso é verdade, Epaminondas?
— É mamãe, — respondeu o pequeno com um tom de convicção de quem jamais fizera outra coisa, senão mentir.
— E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?
— Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança à coisa.
— Achas então que sou tola? — disse D. Sidônia sorrindo e sentando-se tranquilamente. — Tolo és tu!
— Por quê?
— Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!
— É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!
Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha.

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