quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Franklin Távora e a Literatura do Norte (Resenha), de Paulo Marçaioli

 

Por: Paulo Marçaioli
Blog: esperandopaulo

FRANKLIN TÁVORA E A LITERATURA DO NORTE

João Franklin da Silveira Távora foi jornalista, deputado provincial, historiador ligado ao IHGB e romancista. Ficou conhecido na história da literatura brasileira como fundador da chamada Literatura do Norte, escola assim designada por Sílvio Romero, precursora do regionalismo literário nordestino, cuja maior expressão se daria dentro da geração modernista do início do século XX, com escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Jorge Amado.

 

Nosso escritor nasceu em 13 de Janeiro de 1842 no sítio Serrinha da Glória, antiga Candeia, região encravada na Serra de Baturité, no centro-norte do Ceará. Era filho de Camilo Henrique da Silveira Távora,  alcunhado de “o indígena”, um liberal simpático aos movimentos revolucionários de 1817 e 1824.

 

 A Revolução Pernambucana de 1817 foi um movimento de caráter liberal e republicano, cujas origens remetem à divulgação das ideias revolucionárias da revolução francesa e a oposição ao absolutismo monárquico Português: o descontentamento dos liberais pernambucanos foi agravado pelos enormes gastos pecuniários decorrentes da chegada da Família Real Portuguesa no Rio de Janeiro, com aumento de impostos para manter o luxo da corte e para travar guerras na Cisplatina, sem prejuízo da nomeação de portugueses para os cargos públicos em detrimento da nobreza da terra.

 

Já em 1824 eclodiu a Confederação do Equador, movimento de caráter mais nitidamente separatista, liderado pelo padre Frei Caneca e que contou com apoio financeiro dos EUA, que já naquele tempo se interessava pela fragmentação territorial do Brasil, a balcanização de um grande país como meio de melhor subjugá-lo.

 

O radicalismo político pernambucano, tanto 1817 quanto 1824, encontra sua origem mais remota em 1710/1711 na Guerra dos Mascates, que seria tratada com minúcia pelo escritor nos livros “O Matuto” e “Lourenço”.

 

Politicamente, Franklin Távora seguiu os passos do pai: sempre foi um progressista, defendendo a abolição da escravidão, a república e a reforma das instituições de ensino.

 

Entre os anos de 1859 e 1863, o autor de “O Matuto” estudou na Faculdade de Direito do Recife, quando fundou e participou de centros, sociedades e associações de estudantes voltadas a atividades literárias e políticas. Neste período, também se aproximou do jornalismo, com o nobre objetivo de ajudar financeiramente a família, que passava por dificuldades.   Começou como tipógrafo e foi evoluindo para revisor de provas, repórter, editor, chefe de redação e, mais tarde, fundador de jornais.

 

Sua aproximação com a política deu-se neste período de participação na imprensa, tendo atuado no “Jornal do Recife”, fundado em 1859 por José de Vasconcellos e, alguns anos depois, no Jornal “A Situação” liderado pelo Conselheiro Francisco de Paulo Silveira Lobo, filiado ao Partido Progressista.

 

Já ligado a este último partido, foi eleito deputado provincial de Pernambuco para mandato entre 1867/1868, quando tinha apenas 25 anos de idade. Já no primeiro ano de mandato, é nomeado para o cargo de Diretor Geral da Instrução Pública, cargo que hoje equivale ao secretário estadual de educação.

 

Ao assumir o encargo, declarou que pretendia reformar as instalações da Diretoria-Geral, dos diversos colégios a ela vinculados, reorganizar administrativamente as atribuições dos professores e lutar pela liberdade de ensino em Pernambuco. Neste trabalho, encontro ferrenha oposição do Partido Conservador.

 

Dada a sua orientação política liberal e progressista, Távora se empenhou na campanha de libertação dos escravos na imprensa, sendo responsável por traduzir a famosa carta endereçada ao mundo por Vitor Hugo contra a escravidão, na qual o autor de Os Miseráveis alertava: “Ter Escravo é merecer ser escravo”.

 

O que é curioso é que o seu posicionamento político progressista, ao contrário do que se poderia supor, não fez com que o escritor deixasse de ser simpatizante do lado de Olinda e dos senhores de engenho, contra os mascates de Recife, em seus dois livros sobre a Guerra dos Mascates.

 

Na verdade, mais do que um conflito entre comerciantes burgueses e latifundiários, o escritor via naquela guerra as sementes do movimento de libertação do Brasil em relação à Portugal: a oposição retratada na obra de dava entre a opressão da metrópole e a reação nacionalista liderada pelos nobres de Olinda.  Ainda que numa leitura mais economicista ou marxista daquele conflito, o lado burguês e citadino de Recife aparecesse como “progressista” em relação ao lado aristocrático dos senhores de engenho de Olinda. O conflito, nesta perspectiva, se deu entre o comércio de natureza capitalista e a agricultura de natureza escravista ou, como querem alguns, “feudal”.

 


A GUERRA DOS MASCATES

 

“Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que uma revolta filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas – ao comércio e a agricultura, princípios que, quando acordes em seu desenvolvimento, trazem a propriedade e riqueza dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento”. (O Matuto).

 

A Guerra dos Mascates (1710/1711) de fato ficou conhecida na história como a oposição entre as duas cidades, o que de fato foi a exteriorização geográfica do conflito. As suas origens, como não poderia deixar de ser, se deram no plano econômico.

 

Anos após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, a economia da região entrou numa crise decorrente da baixa do açúcar no mercado internacional e da concorrência do açúcar produzido nas Antilhas.

 

A concorrência afetou os ricos senhores de engenho de Olinda, que entraram em decadência por não mais obterem os mesmos lucros com a produção açucareira. Por esta razão, os proprietários dos engenhos foram obrigados a contrair empréstimos com os comerciantes portugueses, chamados de mascates, que ocupavam Recife e possuíam dinheiro para emprestar aos senhores de Olinda, porém cobravam juros altíssimos pelos empréstimos, ocasionando o endividamento cada vez maior dos olindenses. Até então, Recife era apenas um porto e um “bairro” de Olinda. Porém, com o desenvolvimento econômico, seus moradores passaram a postular a sua independência em relação a Olinda, o que foi um dos elementos detonadores do conflito.

 

Embora dependentes economicamente dos comerciantes portugueses, os senhores de engenho pernambucanos não aceitaram a emancipação político-administrativa do Recife, até então uma comarca subordinada a Olinda. A emancipação do Recife foi percebida como uma agravante da situação dos latifundiários locais (devedores) diante da burguesia lusitana (credora), que por esse mecanismo passava a se colocar em patamar de igualdade política.

 

No romance Lourenço, a indignação da nobreza da terra é bem capturada na seguinte passagem:

 

“- Que víamos antes da luta? Dois interesses, um estrangeiro, outro brasileiro. Levados a cobiça, e não satisfeitos com serem senhores do comércio e das indústrias, os portugueses europeus queriam chamar a si a agricultura, impondo aos agricultores obrigações que redundavam em ficarem estes à mercê daqueles. Como não pudessem, por meios lícitos, levar a efeito o seu intento, maquinaram criar a vila onde tinham e onde têm a sua força, e tornar-se, por este modo, árbitros dos preços dos gêneros que haviam de ser forçosamente tachados por almotacés do seu plano; e este diabólico intento estaria de todo realizado, se a nobreza não pusesse para fora o governador que tivera o arrojo de promover a criação da vila maldita”.

 

Nos dois romances que tratam da Guerra dos Mascates, o escritor realça a violência do conflito, que opôs bandoleiros mascates liderados por Camarão e Tundacumbe e outros tipos populares, e uma nobreza altiva que se recusou a capitular e chegou mesmo a desenvolver uma “guerra de guerrilhas”, até a obtenção do perdão de El-Rei três anos após o início da guerra.

 

Como dito, no romance, o escritor claramente se posiciona favorável aos nobres de Olinda, vistos como precursores do nativismo e do movimento da independência, de acordo com o nacionalismo da escola literária romântica.

 

Vejamos como eram retratados os mascates:

 

“Afiguravam-se estes aos seus olhos vultos patibulares, visões pavorosas como demônios em que ele acreditava.

 

Tinham calças arregaçadas e enlameadas, as jaquetas pegadas ao corpo, chapéus ainda umedecidos e demudados, nas faces estampado o sono, o cansaço, a fome e a maldade, nas mãos armas sinistras e ameaçadoras.

 

Grande parte desta força passante, de duzentos homens, era composta de caboclos; no restante havia de tudo – negros, curibocas, semibrancos e até brancos”.

 

Mais do que uma história épica da Guerra dos Mascates, temos neste romance uma descrição da fisionomia física e moral do “matuto” que é o sertanejo agricultor, o lavrador, o almocreve, bem como da sua estrutura familiar, dos costumes, do folclore, das festas populares, do papel da religião, dos enlaces conjugais. Mais do que um romance histórico, temos a partir da leitura deste romance regionalista uma fonte preciosa do sertanista brasileiro:

 

“No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão – eis em que ele consistia. 

 

Todos tinham os pés nu, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.”.

 

OS ÚLTIMOS MOMENTOS DA VIDA

 

Já no final da vida, com a morte da mãe e uma doença nos pulmões, Franklin Távora abandona a literatura e os trabalhos institucionais, passando, inclusive, por dificuldades financeiras.

 

O escritor morreu no dia 18 de agosto de 1888, com poucas pessoas comparecendo ao enterro. Sílvio Romero, um dos poucos escritores presentes no velório, resumiu com estas palavras o drama vivido pelo seu amigo: “Cumpre destacar em síntese o valor deste escritor, sempre muito maltratado pelos literatos de seu tempo.”.

 


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BIBLIOGRAFIA
“O Matuto” – Franklin Távora – Editor Iba Mendes

“Lourenço” – Franklin Távora – Editor Iba Mendes 

“Franklin Távora” – Cláudio Aguiar – Série Essencial – Academia Brasileira de Letras – Imprensa Oficial.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

O amor ofendido, e vingado (Conto histórico)

 

O AMOR OFENDIDO, E VINGADO

A Violação da Fé conjugal tem sempre arrastado em seu séquito as mais grandes desgraças. Não se pode lançar os olhos sobre a historia, sem que se ache disto mil exemplos funestos. Os Galos Bélgicos nos oferecem um, capaz de fazer impressão sobre os corações, que não forem inteiramente privados do sentimento da virtude.

No ano de 1539 vivia em uma terra considerável entre Gand, e Curtrai, a Condessa de Leerven, viúva, e possuidora de bens imensos. Ela não tinha mais do que uma filha chamada Adriana, a qual a uma grande beleza ajuntava muito de engraçada. A natureza a tinha dotado de muito boas qualidades, que uma má educação tinha corrompido. Seu caráter, ainda que dócil no seu fundo, era firme; ordinariamente transportado; e algumas vezes extremo. Acostumada a não ser contradita, nada a podia desviar dos projetos, que uma vez tinha concebido: a Condessa sua Mãe, que a idolatrava, a deixava absolutamente Senhora de suas vontades.

Um tão grande partido foi logo procurado por muitas pessoas. Entre o grande número de seus adoradores, o Barão de Vierkove teve a felicidade de agradar a Adriana. Ele era de uma figura encantadora, e feita para o amor; sua alma sensível, e terna, não pôde resistir aos atrativos de Adriana; e como ele devia bem pouco temer seus rivais, não tardou em ser feliz. O partido era conveniente; por ser ele também o herdeiro de sua casa. A Condessa aplaudiu a escolha de sua filha, e estes felizes amantes forram unidos com magnificência, e grande contentamento de suas respectivas famílias.

Nunca união alguma deu sinais de ser mais constante. Havia pouco mais ou menos um ano que eles viviam nesta feliz, e rara inteligência, quando perderam a Condessa de Leerven.

Depois de lhe terem feito os últimos deveres, eles foram a Gand, para distraírem a sua dor. Naquele tempo o Imperador Carlos V vem a Flandres para apaziguar as perturbações, que ali se tinham levantado por ocasião das novas taxas, que ele tinha imposto; e ficou algum tempo nesta Cidade, onde fez severamente castigar os amotinadores.

O Barão, que tinha a honra de ser particularmente conhecido deste Príncipe, foi fazer-lhe sua Corte: ele foi de todos os prazeres deste Soberano, e mesmo algumas vezes fazia partida com ele. Não havia algum concerto, que o Imperador não fizesse executar por Músicos Italianos, que trazia consigo. Safira, celebre Cantarina, tinha tanto de espírito como de talento: ainda moça, divertida, e espirituosa, bem depressa se apercebeu da impressão, que sua voz, e seus encantos tinham feito sobre o terno Nierkove; ele esquece-se de suas protestações à terna Adriana; ele se abandona à sua nova paixão, e só vivia para Safira. Ele corre a sua casa, lança-se a seus pés, pinta-lhe seu ardor em termos os mais persuasivos, enche-a de seus donativos: em fim, ouro, diamantes, festas, tudo foi prodigalizado. Duvida-se bem qual dos dois foi o mais feliz. Quando se reúnem os talentos, a figura, a fortuna, e o nascimento, pode-se por ventura achar mulheres cruéis, principalmente no estado de Safira?

O Barão só se ocupava de sua felicidade (se dela se pode gostar, quando imprudentemente se faz desgraçada uma Esposa digna da mais viva ternura): tal é a desordem do coração humano, quando ele se entrega a seus desejos, e quando a razão o abandona.

A triste Adriana não pôde conceber em seu Esposo uma mudança tão repentina: ela estava muito bem persuadida de sua infidelidade: as liberalidades do Barão já se tinham notado, e a sua familiaridade com Safira era pública a toda a Corte. A desafortunada Baronesa deixou ao tempo o cuidado de fazer tornar a si este infiel: ela se persuadia que aquilo mesmo que lhe tinha roubado seu Esposo, poderia da mesma sorte restituir-lho. Além disto ela sabia que o único meio de reganhar um inconstante, era mostrar-se ignorante de sua perfídia, servindo-se somente de paciência, e de doçura. As repreensões irritam; o silêncio nos condena, e nos faz entrar em nós mesmos.

Ela tomou pois este partido; e escreveu ao Barão dizendo-lhe, que se ele tinha negócios na Corte, ela partia à sua Pátria a tratar de seus interesses; e que lá esperava noticias suas. Sem lembrança de resposta, ela partiu logo, penetrada de dor, e desesperação. Ela adorava o Barão: sua inconstância a penetrou sensivelmente. O retiro em que ela vivia, longe de extinguir seu amor, lhe deu pelo contrario novas forças. Somente corações sensíveis, que tem experimentado a mesma sorte que Adriana, podem julgar da grandeza de seus males.

O Barão, sempre encantado de sua querida Safira, parecia ter-se inteiramente esquecido de Adriana: ele sobre isto nada falava a seus amigos; e ninguém da mesma sorte se atrevia a falar-lhe: ele mesmo nunca mais lhe escreveu. Sempre ocupado de sua amante, não a deixava um só momento. Ele a retirou da comitiva do Imperador, que tinha partido para Espanha. Ele lhe procurou uma casa toda abundante; e prazeres sempre novos preveniam continuadamente os desejos da galante Safira, ambos no meio das delicias julgavam perpétua a sua felicidade!

As pessoas de honra começaram a murmurar: ainda não era costume, e principalmente em Flandres, ver-se o escândalo sem desassossego. Quanto estes tempos se tem mudado! Presentemente se faz consistir nisto mesmo a fidelidade; ninguém se envergonha de tratar como respeitáveis estas uniões criminosas quando elas são duráveis: o crime aplaudido goza hoje das vantagens da virtude. A vida publica de Nierkove, e de Safira indispunha o povo; e disto mesmo eles foram informados. O Barão para evitar tudo isto, resoluto a ir estabelecer-se em Veneza, desfez-se de seus contratos, e de suas terras, para fazer transportáveis todos os seus bens. Adriana, que não ignorava o menor passo de seu marido, não pôde resistir a este último golpe. Transportada, de furor...

Ingrato, exclama ela, é este o fruto do amor que em mim tens experimentado. A perda de teus bens não é o que me aflige: liberaliza-os à tua indigna, e vil Safira, porém restitui-me o teu coração. Torna a mim querido, e cruel Esposo; meu amor te perdoa... Mas, que digo? O infiel vai partir... Pode ser que ele se aparte de mim para sempre!... Não, perjuro!... tu não me escaparás, eu saberei punir-te minha vingança fará tremer, servindo de exemplo àqueles, que como tu, desprezam a ternura de uma Esposa desafortunada... Eu tenho procurado todos os meios de te recuperar; o tempo, meu silêncio, minhas lágrimas, minha desesperação, não tem podido abrandar-te... A morte só é... Que digo eu? Ai de mim!... Sim, sim, cruel, a morte só vai unir-vos.

Adriana escreveu logo a uma de suas amigas, e lhe pediu em um escrito separado que só abrisse sua carta, passados oito dias; porque ela continha cousas de última importância, que se deviam ignorar até este tempo. Ela fez logo pôr grades em todas as janelas de seu aposento, e pregar nas portas fechaduras ocultas, cujo segredo só ela conhecia. No mesmo tempo dispôs tudo de sorte que pudesse prosperar o terrível projeto, que tinha meditado. Quanto é para temer uma mulher justamente irritada! A desesperação ocupa toda a sua alma; a vingança a mais terrível lhe parece suave; as maiores extremidades meios ordinários; e sua própria fraqueza parece dar-lhe todas as forças.

Tudo assim disposto, ela finge uma doença mortal: de uma mão trêmula ela escreve a seu Esposo: Eu morro, e vos perco. Eu não vos imputo a minha morte, e rogo ao Céu que vos inspire o arrependimento. Vós recebereis todos os meus bens da mão de um amigo comum, que deles será o depositário. Eu não choro a vida; porque nem tenho filhos, nem Esposo, ai de mim! que me pertençam. Poucas horas tenho já de vida; ao menos concedei-me a graça de vos tornar a ver a última vez. Vivei feliz, eu morro, e vos adoro.

O desgraçado Barão caiu no laço, que era difícil evitar-se. Ele se persuadiu que não devia honradamente deixar de ver sua mulher morrendo: este passo lhe pareceu inocente, e a lembrança do deposito lhe facilitava o meditado projeto de fugir com Safira. O interesse teve muito mais poder sobre seu coração do que o amor. Safira, que não podia suspeitar a desgraça de seu amante, o persuadiu a que desse esta última consolação à Baronesa espirando. Ele parte, e em poucos momentos ele chega à sua terra. A tristeza, que ele vê espalhada entre toda a família, moveu sua piedade. Um negro pressentimento se apodera de seu coração, e sem poder dar conta de seu transporte, ele entra tremendo na Câmara de sua Esposa. As gentes, que à vinda inesperada de Nierkove, tinham ordem de se retirar, os deixam sós. A furiosa Adriana fecha logo todas as portas. De repente, com os olhos errantes, ela se levanta, e vai a seu gabinete pôr fogo, (sem que seu marido disto se aperceba) a algumas matérias combustíveis, que ela tinha preparado; e logo torna, e se lança repentinamente sobre seu leito. O Barão aterrado quer chamar socorro, persuadindo-se que era isto efeito de transporte: porém qual foi seu espanto quando ele viu de repente toda a casa em fogo. Treme, perjuro, exclama Adriana, e reconhece uma Esposa ultrajada: já que tu não tens podido viver comigo, ingrato, ao menos poderás morrer. A violência da chama, que vai a consumir-te, não igualará jamais os fogos, que me tem abrasado por ti... A estas palavras o fumo lhe tira a respiração: o Barão sobressaltado debalde procura salvar-se. Bem depressa a chama sai pelas janelas: correm a socorrê-los; arrombam-se as portas; porém já é tarde: estes Esposos se acham prostrados, e já meios consumidos.

Os progressos deste incêndio foram tão rápidos, que em pouco tempo todo o edifício foi reduzido a cinzas. A notícia chegou logo a Gand: assentou-se que este fogo tinha sido efeito da casualidade; porém a carta que Adriana tinha escrito à Viscondessa Copens, sua amiga, revelou este horrível mistério. Ela queria sem duvida deixar à posteridade um tremendo exemplo da vingança de uma mulher desesperada, e uma imagem terrível do castigo de um Esposo perjuro, e querido.

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Traduzido do francês em 1918.
Revisão ortográfica: Iba Mendes (2023)